terça-feira, 29 de setembro de 2020

Para a menina do sonho

Guardei para mim
o teu sono mudo.

Tiro os sapatos
para entrar neste lugar
de riso e memória,
escrevo uma história
dentro das palavras que iremos trocar.

O vento faz um caminho em ti
que desconheço.
Você me nega certezas,
não me diz qual é a sua religião,
não diz a que horas pensa em mim.

Peço que não negues
a sucessão de coisas
que estão por acontecer,
tenho medo que adoeças.

Tenho medo de que esqueças
o meu nome.

De onde vejo o mundo
já não dá mais pra voltar.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Quando já não podia de saudades

Estavas por aqui. Assídua, real, palpável. Hoje, não mais. Essa incerta presença de chuva que, quando já não podem os olhos contra as fronteiras, faz do cheiro de terra molhada o caminho que se quer.

Não sei se voltas. Faço o quê? Me entrego para combate à fome na África? Esqueço as ofensas de Deus e tomo, enfim, também eu a via crucis? Me junto aos homens que andam às ruas? Choro com a mulher que perdeu o filho? Ao menos se o corpo me oferecesse uma ferida pela qual a dor escoasse. Mas a dor é invariavelmente qualquer coisa que não passa.

Se voltas, faço o quê? Corto os cabelos? Adio os planos com a navalha? Dou-lhe beijinhos? Ponho à mesa xícaras para o café? Leio em bom tom para os teus ouvidos tudo isso que tenho escrito nos dias longe de ti? Espero em silêncio pacientemente o que terás a dizer? Ou faço-me, então, como os religiosos que em nada se aplicam e de nada dispõem suas vidas senão para o terror e a glória da espera? E nunca, meu amor, se sabe o que fazem aqueles que esperam.

Prometo tatear seu corpo como um homem cego põe-se a conhecer o invisível, para que eu nunca mais esqueça teu rosto.

Meu amor de tanto tempo, esta carta é uma confissão contra o meu próprio corpo e são estas palavras com as quais escolho me trair. Perdoa-me por tudo, menos por te amar.


                                                                                                 Para ela, 28/09/2016

Com o lilás e o amarelo

Quero escrever um poema
e usar as palavras:
faca, bonita, Ester
Maranhão

Mas prefiro falar sobre
todas aquelas coisas
que acontecem entre
a pele e o caminho

Eu quero pôr as mãos
no que vem do ventre
e morde

Com o lilás e o amarelo,
te chamar de meu amor

Dizer-te: foi para ti
que ajustei os botões do tempo,
deixei nu o que antes era vazio,
que quis muito dar um outro número
ao nosso amor e mesmo assim,
não foi concedida
uma ferida para o corpo que dói
(mas o coração sabe continuar)

Não é porquê danças
que a terra palpita,
há muito o céu se move
sem o trabalho dos homens.

"et puis quand tout sera fini
Je mourrai.
"